Nós, os juízes
Tenho a ideia generalista de que ninguém gosta de ser julgado. Ok, dizer ninguém pode ser complicado. O que sei é que eu não gosto. A maior parte das pessoas que conheço também não. E carrego comigo o pensar de que isso se estende a uma grande parcela das pessoas deste mundo.
Muitas das coisas que evitamos – atividades, áreas da vida, pequenas atitudes cotidianas – tem em comum exatamente o medo do julgamento. Lembra comigo, por que você não gosta de falar em público? Ok, pode até ser que alguém que esteja lendo este texto agora não ligue ou até curta bastante falar para uma plateia. Entretanto o mais comum é ter pavor e tentar evitar a todo custo. Mas qual o problema em falar na frente de pessoas? Fazemos isso desde pequenos praticamente todos os dias. A diferença está no medo do julgamento. Não gostamos de nos sentir julgados, analisados, comparados. E se alguém nos condenar? E se muitos nos criticarem? Melhor não. Melhor nunca. E passamos a acreditar que não nascemos pra isso e que odiamos até pensar no assunto.
Julgamento. Está aí algo complicado de vivenciar, mas que insistimos em realizar. Gosto de acreditar que já melhorei um bocadinho bem pequenininho neste quesito. Afinal, atuo com conexão humana, não violência, escuta, diálogo, transformação de conflitos. Tantos anos estudando, praticando, ensinando, propagando, devo estar alguns passinhos à frente. Mas aí é que está. Julgamos o outro e o mundo a nossa volta o tempo todo. Julgamos porque precisamos de parâmetros para saber se devemos fazer algo. Temos que ter algum critério para saber se uma pessoa, coisa ou ação pode ser perigosa ou fazer bem. Julgamos o tempo todo em ordem de nos proteger. Julgamos para sobreviver. Mas então como fica o que sentimos e o que os outros sentem nessa equação? Como ficam as relações? Como fica a vida em comunidade? Se ninguém gosta de ser julgado e todo mundo julga a todo instante, como é possível viver bem com pessoas ao redor?
Todos os dias, desde 2015, paro o carro em um estacionamento de uma pequena rua que é composta praticamente só de estacionamentos. É um quarteirão bem pequeno, mas muito movimentado e nele existem quatro estacionamentos. Três do lado esquerdo e um do lado direito. Pois bem, hoje estava saindo com o meu carro e fiquei um tempão com o carro embicado procurando enxergar se alguém me deixaria sair ao mesmo tempo que me certificava de que não vinham pedestres tentando atravessar. Depois de muito esperar ganho uma chance. Ufa! Um senhor para o carro e me dá sinal para que eu possa prosseguir. Legal! Ainda bem que ainda existem pessoas gentis neste mundo! Obrigada senhor bacana! E fui saindo rapidamente para não atrapalhar o fluxo do trânsito por muito tempo. Acontece que somente ao sair me dei conta de que uma pessoa no estacionamento anterior (o que fica ao lado do que eu uso) também estava esperando para sair e passei direto. Depois que passei me senti desconcertada, sei lá por quanto tempo essa pessoa teria que esperar até que alguém resolvesse parar pra ela poder ir embora. Aquela moça deve ter me achado uma baita egoísta. Lá estava ela na mesma situação em que eu me encontrava minutos antes, dependendo da ajuda (empatia, compaixão, gentileza, solidariedade, chame como quiser chamar) de estranhos. E eu, ao conseguir o que precisava poderia ter feito o mesmo por ela, mas não fiz. Que atitude egoísta de se ter no trânsito.
Continuei meu caminho me consolando internamente “Você não tinha visto. Tinha que sair rápido. Aquela rua é complicada, muita gente passando. Essas coisas acontecem.” Pronto. Me senti uma pessoa um pouco menos feia internamente e fui seguindo meu caminho. Mas eis que me vem a minha mente um episódio semelhante de alguns meses atrás. A mesma rua. O mesmo movimento. A mesma situação de depender da ajuda de estranhos pra fazer o que temos que fazer. Só que neste dia era eu quem dependia da pessoa saindo do estacionamento anterior (lembram? São três estacionamentos na mesma calçada). Uma senhora e eu aguardando um tempão pra sair e nada. Até que surge um estranho gentil que coloca nossa necessidade em primeiro lugar e para o transito. Ela sai, passa com seu carro em minha frente e continua. O movimento volta. E eu fico empacada. E mais que depressa em minha mente “Poxa! Custava ter feito comigo a mesma gentileza que fizeram com ela? Que egoísmo. É por isso que o mundo está como está.”
Quando estava na situação de ser julgada fiquei me dizendo internamente que qualquer julgamento que a moça fizesse seria injusto. Em poucos minutos justifiquei minhas ações e me absolvi. Mas semanas antes quando estive na posição de julgar a mesma situação foi imediata a minha condenação. “O trânsito é uma lente de aumento para os comportamentos humanos. Que senhora egoísta. Fingiu que não me viu!”
Então está aqui a razão que me motivou a escrever hoje. Gostamos de acreditar que nós julgamos menos. Tendemos a pensar que julgamos melhor. Acreditamos que nossa balança, nosso crivo é mais justo. “Os outros julgam, eu analiso.” “Os outros julgam. Eu sei do que to falando.” “Os outros julgam, eu já aprendi como a vida deve ser.” “Os outros julgam. Eu sou uma pessoa flexível, sou uma pessoa boa que já viveu muito nessa vida”. “Tenho justificativas.” “Se fiz foi sem querer. Jamais faria algo ruim, me importo com as pessoas.” “Que exagero essa reação, é claro que eu não tive a intenção de fazer mal a ninguém.”
Não importa se sou PhD em direito, em sociologia, em ciências sociais, em comportamento humano, em emoções humanas, em relações, em comunicação… O fato é que não gostamos de ser julgados, mas escolhemos sentar diariamente na cadeira de juiz da vida alheia. Digo escolhemos porque temos meios de repensar nossas opiniões, nossas expressões e nossas relações. Quando optamos por abandonar a falsa ideia de que somos diferentes do outro, quando nossa escolha muda, ela nos pede, num primeiro momento, pra virarmos a lente do nosso juiz interno. Pois só conseguimos começar alguma transformação quando passamos a escutar com mais atenção o que se passa por dentro. Então passamos a verdadeiramente escutar o que dizem nossos pensamentos. Mas escutar com fome. Sabe como é isso? Com atenção curiosa e questionadora. Aquela que se abre pra compreender e que ao mesmo tempo tem tranquilidade pra perguntar e, se preciso, voltar atrás. Num segundo momento essa escolha pede que atentemos para o que é realmente o julgar e se existe como julgar sem machucar. Ela também pedirá pra que, ao virarmos a lente do juiz interno, não nos tornemos réus, chega de sempre ter que encontrar um culpado e condená-lo. Mas tudo isso é papo pra uma próxima prosa, um outro texto, outras lembranças e por aí vai.

Graduada em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica PUC/SP;
Aprimoramento em Saúde Coletiva pela Universidade Católica PUC/SP;
Certificada pelo Instituto Holos de Qualidade através da International Coach Federation como Coach e Mentoring;
Pós graduada em Motricidade Orofacial com Ênfase em Disfagias no Âmbito Hospitalar CEFAC/SP;
É Coach e Mentor em Comunicação e Fonoaudióloga clínica. Com atuação no desenvolvimento de pessoas para o aperfeiçoamento da competência comunicativa, aprimoramento da comunicação verbal, comunicação não verbal, escuta ativa, recursos vocais, comunicação não violenta e transformação de conflitos, desenvolvendo comunicação assertiva, autentica e compassiva para o relacionamento interpessoal e profissional.